Nasce uma nova cidadania: a língua portuguesa

ENTREVISTA COM JOSÉ MANUEL DIOGO

José Manuel Diogo, “o homem de lá e de cá”

Em 1968, Vinicius de Moraes viajou para Roma, onde planejava passar o Natal naquele ano. No caminho pra lá, fez parada em Lisboa, onde “foi ter” com a cantora Amalia Rodrigues e músicos e  poetas portugueses. Como sempre acontecia com Vinicius, o encontro rendeu horas, música e poesia, que foram gravadas e editadas em Amalia/Vinicus, disco lançado posteriormente. Aliás, esta escriba recomenda fortemente a audição desse encontro, mágico e oceânico, em torno da língua portuguesa.

Pensei em Vinicius e Amalia assim que tomei contato com o projeto Cidadania da Língua capitaneado pela Associação Portugal Brasil 200 anos (APBRA). Fui convidada, pra minha alegria e honra, a gravar um vídeo, ao lado de outros escritores, jornalistas e pesquisadores, sobre o conceito regente desta iniciativa: a criação de uma outra forma de viver e conviver a partir de uma cultura forjada na mesma língua: a língua portuguesa. Um conceito afinado ao debate contemporâneo sobre mobilidade global e questões de integridade social, cultural, institucional e econômica.

O  projeto agora tem sede: a Casa da Cidadania da Língua em Coimbra, Portugal. O casario foi a moradia do poeta João José Cachofel, onde se reuniam artistas e intelectuais e que até então abrigava a Casa da Escrita. Um espaço para associações, editoras, governos, jornalistas, intelectuais e artistas. Com a missão de “estudar, pensar e  pesquisar as novas vizinhanças, as periferias que chegam ao centro, novos atos culturais, novas maneiras de entender o mundo”, a sede é a materialização de um projeto inovador que celebra a língua portuguesa como um território cultural compartilhado para promover uma nova relação entre os países de língua portuguesa, “quando o território se apresenta desmaterializado e a língua não é mais um instrumento, mas sim uma verdadeira plataforma.”

Com a palavra, José Manuel Diogo, o “homem de lá e de cá”, fundador e presidente da APBRA,  jornalista, escritor, colunista semanal na imprensa diária em Portugal, Angola e Brasil, diretor da Câmara Luso Brasileira de Comércio e Indústria, e um apaixonado pela literatura e pela língua portuguesa.

DZ: Zé Diogo, pra começo de conversa, vamos falar deste conceito: do que se trata a Cidadania da Língua?

José Manuel Diogo: A cidadania da língua é uma nova forma de pertencimento. Eu, quando pensei sobre isso, dissera que era um conceito moderno, inovador e revolucionário, com referencia aquilo que são os grandes conceitos do século vinte: modernismo, inovação e um conceito um pouco mais antigo, da revolução, mas aplicada a estes dois conceitos em sequencia. Hoje nós vivemos este mundo: um mundo onde a cidadania não pertence a um povo, a uma nação ou  um espaço geográfico limitado, mas que se executa, que se exerce em um espaço desmaterializado. Que se conjuga com esse espaço cotidiano da vivência, mas que já não é só o espaço físico, é um espaço global, ao qual podem existir pessoas que vamos conhecer e com as quais vamos estabelecer novas metas de confiança e novas relações de confiança, ante impossíveis. Por isso que ele é moderno, inovador e revolucionário.

“A cidadania da língua deixou de ser uma ideia poética e passou a ser
uma realidade jurídica.”

DZ: Para além de um conceito, como esta cidadania da língua se materializa? Sabemos que Portugal concedeu, por exemplo, a autorização de residência por um ano aos imigrantes da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) que estão no país. Como  você percebe essa integração, na prática, de tantos brasileiros atualmente residentes em Portugal?

José Manuel Diogo: A cidadania da língua deixou de ser uma ideia poética e passou a ser uma realidade jurídica quando Portugal, Guine Bissau, Guine Equatorial, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e o Brasil concordaram com uma lei de mobilidade da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Essa lei, ainda não aplicada com a mesma velocidade em todos os espaços, nos dá uma visão muito clara de que o futuro será diferente. Essa nova lei, no que diz respeito a Portugal, permite que qualquer cidadão de um país de língua oficial portuguesa  possa, ao abrigo desta lei, digitalmente, junto aos consulados portugueses, pedir  uma autorização de residência com duração de um ano em Portugal. A autorização é concedida automaticamente, vistas as questões de segurança, mas já não carece que alguém nos ofereça um trabalho, ou que tenhamos dinheiro na conta ou mesmo um seguro. Hoje precisamos assinar um termo de responsabilidade. Ao fim do ano, essa autorização automaticamente se renova por dois anos e por mais dois anos. É incrível!  Por isso, a cidadania da língua já é uma realidade.

A filosofa e escritora Djamila Ribeiro foi uma das convidadas  do Ciclo Cidadania da Língua promovido pela APBRA

DZ: Qual o papel, hoje, da Língua Portuguesa no contexto global? E o da cultura brasileira no contexto global da língua portuguesa?

José Manuel Diogo: Essa pergunta é muito boa, Dani, e um pouquinho atrevida, feita a um português que, como você sabe, ama o Brasil (risos). Não há hoje língua portuguesa sem Brasil. Não há hoje CPLP ativa e relevante sem o Brasil. A língua portuguesa é hoje a quarta ou quinta língua mais falada no mundo, dependendo de como consideramos o árabe nas geografias. Mas é uma língua global que se fala em quatro continentes. Quando o estudo do Itaú Cultural, apresentado pelo Eduardo Sarón (presidente da Fundação Itaú), nos diz que 3,11% do PIB do Brasil vêm das industrias criativas (dados apresentados em 2020 em pesquisa liderada pelo professor e pesquisador Leandro Valiati) e  que isso é mais que o da indústria automotiva neste período, não estamos falando de poesia, mas de economia, séria, pesada e de grande contribuição ao nível da indústria e matérias primas.

Por isso o Brasil deve investir na promoção de suas industrias criativas. Deve fazer isso também na Apex (Agencia Brasileira de Promoção de Investimentos e Exportações), como temos visto, deve fazer isso com Portugal. E deve fazer isso com Coimbra, onde criatividade e conhecimento têm uma relação umbilical com o Brasil. Por isso, nós aceitamos como exclusividade em Portugal essa ideia de termos uma Casa da Cidadania da Língua em Coimbra. E tenho que cumprimentar o presidente da Câmara, José Manuel Silva, que percebe  o futuro e  enfrenta o imobilismo que se instalou na cidade nos últimos anos e que a virou pra dentro, virando-a agora para fora, e aceitando o Brasil neste que é o primeiro movimento de contra colonização da historia.

“Não há hoje língua portuguesa sem o Brasil.”

Sede da Casa da Cidadania da Lingua, em Coimbra, Portugal.

DZ: Coimbra será a Casa da Cidadania da Língua Portuguesa, inaugurada em 12 de outubro, que ocupará as instalações da Casa da Escrita em Coimbra. Como se deu este convite e qual é a equipe que vai  conduzir esta gestão?

José Manuel Diogo: A Casa da Cidadania da Língua é uma marca registrada da Associação Portugal Brasil 200 anos. O prefeito e presidente da Câmara de Coimbra, nos desafiou a transformar a Casa da Escrita, um extraordinário equipamento cultural, de 1200 m², com  jardim, sala de pesquisa, auditório, cozinha industrial, um orquidário e todo o céu e sonhos do mundo, na Alta Coimbra, patrimônio cultural da humanidade. Um lugar único e central. Coimbra é o berço da erudição em língua portuguesa, o berço do academismo e da sabedoria. E por isso, Coimbra talvez tenha envelhecido de uma forma diferente porque, enquanto cuidava do seu saber interior, não conseguiu cuidar de saber o que as periferias, o Sul e o Norte, o Leste e Oeste iam transformando ao seu redor. Hoje, nessa era de mobilidade global, da cidadania da língua, isto é possível. Então, a nossa Casa da Cidadania da Língua, como todas outras que venham a acontecer, sendo duas já previstas no Brasil, uma em São Paulo e outra em Belo Horizonte, criou uma equipe curatorial feita de diversidade e cuidado com o futuro. Nossa equipe é composta pelo gestor cultural Carlos Moura Carvalho, de Portugal, pela poeta e vencedora do Prêmio Jabuti 2023, Luiza Romão, do Brasil, e pela professora universitária Célia Sousa, de Portugal, além do escritor e gestor cultural André Augustus Diasz, do Brasil. Na Casa de Coimbra temos ainda o português Rafael Nascimento, chefe da divisão de cultura da Prefeitura de Coimbra.

“O futuro será o que nós soubermos construir.”

DZ: E qual o futuro que você vislumbra pra Casa da Cidadania da Língua?

José Manuel Diogo: O futuro será o que nós soubermos construir. O futuro da Casa da Cidadania da Língua é o futuro dos cidadãos que conseguirem aderir ao projeto e essa sua vontade de querer ouvir o projeto é parte deste futuro.

José Manuel Diogo: “Já temos duas sedes da Casa da Cidadania da Língua previstas no Brasil: uma em São Paulo e outra em Belo Horizonte.”

DZ: Lembro-me, quando morei na Alemanha, há cerca de 15 anos, de causar por vezes espanto, ao enfatizar que o Brasil era o único pais da América Latina a falar português (e não espanhol). Sempre achei que essa era a semente de varias potencialidades ainda não exploradas. Chegou o momento de fazer isso acontecer?

José Manuel Diogo: Para entender o Brasil onde, entre o Oiapoque e o Chuí  há 17 quilômetros a mais que entre Lisboa e Moscou, na Rússia, é aí que nós entendemos o papel de Portugal e, principalmente, de Coimbra, em um continente em que há só um país que fala português e apenas um que fala espanhol. E por que? Por uma questão política, de pobreza ou estratégica, no período colonial de ocupação, Portugal nunca criou uma universidade no Brasil. Ao contrário da Espanha, que criou universidades em Quito, em Lima, em Assumção, em Montevidéu. As elites que fizeram a revolução na América do Sul, que criaram os países de língua espanhola, elas  pensaram a revolução em seus próprios países. A ida da Família Real Portuguesa em 1808 leva a Europa para o Brasil e, de certa forma, ela leva o passado para o futuro. Talvez este seja um elemento desta contra colonização que estamos a viver. Nós levamos o passado para o futuro e agora o futuro vem resgatar o passado. Mas sobre isso há muito o que se estudar e este é um dos papeis fundamentais  da nossa Casa da Cidadania da Língua.

“A cidadania da língua é uma nova forma de pertencimento. “


Para conhecer mais sobre a Casa da Cidadania da Língua, acesso o site: https://casadacidadaniadalingua.org


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